Iniciado
na disciplina de Atelier I e prolongado em Estágio I, ambas sobre orientação de
Patrícia Fagundes, O Feio – In Process
é o espetáculo em cartaz no mês de maio no Projeto Teatro, Pesquisa e Extenção
(TPE). A montagem, inclusive, já se mostra preparada para deixar o âmbito acadêmico
para uma temporada no Goethe-Institut Porto Alegre no
próximo mês, onde o público será agraciado com a versão final da peça. Contudo,
é evidente que essa cereja do bolo só é possível graças a uma massa muito consistente,
que usa de recursos policênicos como fermento e do panorama da perda de
identidade do homem contemporâneo como recheio.
O texto do dramaturgo alemão
contemporâneo Marius von Mayenburg foi
traduzido especialmente para esta montagem por Francisco Klinger Carvalho e
pela própria diretora do espetáculo, Mirah Laline. O mérito inicial da
encenação está na escolha de explorar a comicidade latente da obra, que acaba
por servir como cerne principal para a origem consequente de todas as outras
construções em palco, desde o ritmo da ação até os formatos escrachados de
atuação. Em contrapartida, o que faz com que tudo isso não se torne apenas mais
uma comédia rasgada é a essência ideológica do texto, que parece
respeitosamente preservada e que acaba por conferir ao todo não só o riso
satírico, mas também a seriedade do questionamento do ser.
No chão do palco vemos uma
espécie de campo de disputas desenhado, remetendo ao jogo de interessas no qual
a história é calcada. Fora dessas linhas, os atores despem seus personagens, no
melhor estilo Brecht. O figurino executivo usado por todos os atores vem ao
encontro das negociações comerciais que circundam a trama e parece concretizar
uma padronização que, na verdade, é a temática de toda a obra. A iluminação é precisa
e satisfatória, e a única ressalva que faço é quanto à marcação de um ator fora
do foco da luz com o intuito de fazer uma piada: a proposta como elemento
avulso de metateatralidade não surte efeito, pois seria necessário que essa
brincadeira com os mecanismos teatrais viesse acompanhada de outras situações
similares, que não acontece.
Não há tempo para distrações. A
ação desenvolvida se dá em um ritmo acelerado e intenso, que a cada nova cena
parece mais eficiente e que só não é alcançado na cena da conferência de
empresas, em que os atores trabalham na quase imobilidade por tempo em demasia.
O irônico é que essa dinamicidade é possibilitada justamente pelas transições
de cena, muitas vezes o tendão de Aquiles de muitas montagens. Duas cadeiras e
uma mesa com rodas em suas pernas, a iluminação bem marcada e o jogo teatral
rápido dos atores associam-se para que não haja intervalos na narrativa. Há
algo de cinema em O Feio, pois parece
que a apresentação passou por uma hábil edição, que costurou pontualmente uma
cena à outra. Falando de cinema, as poucas, mas interessantes, projeções de
vídeo só pesam a seu favor – desde uma avulsa propaganda de hotel, responsável
pela conquista da atenção do público logo nos minutos iniciais, até vídeos
cirúrgicos reais que são causadores de um incômodo e de uma angustia que culminam
na inserção do espectador frente à temática de discussão.
Outro
artifício para a não dispersão das percepções do espectador é concretizado por
coreografias ora vibrantes ora clichês, que desempenham um papel de injeção de
adrenalina em cena. Exemplo vivo disso é a cena de abertura, uma longa
sequência de movimentos que se apropria tanto de precisão como de caos corporal
para conferir um princípio visceral a montagem desde seu primeiro momento, ato
arriscado, mas que não decepciona. Tudo isso ao som do industrial metal dos alemães do Rammenstein, com certeza uma das
escolhas musicais mais felizes. A trilha sonora pesquisada é um elemento
bastante presente na composição de muitas cenas, porém em alguns casos trabalha
com certa obviedade, que faz surgir a vontade de que ao invés de ser tão
abrangente seguisse uma linha sonora mais específica, como, por exemplo, a do industrial metal ou talvez de músicas de
origens germânicas (afinal, também temos Klaus Nomi).
A cerca das atuações, é
inevitável destacar que Paulo Roberto Farias nos presenteia com uma inspirada
composição de seus dois personagens, na qual é nítido que o ator partiu do
mesmo ponto em comum (dadas as características similares entre ambos), mas
explorou as nuances que diferenciariam estas figuras e assim chegou a um chefe
cínico e debochado e a um médico doentio e espasmódico. Danuta Zaghetto segue pela mesma linha,
mostrando-se versátil, pois enquanto uma de suas personagens é um arquétipo que
vai ao poucos convencendo o espectador, a outra segue por um caminho mais
realista, com uma sinceridade expressiva que conquista nossa simpatia de instantâneo.
Marcelo Mertins constrói melhor o papel de principal oponente do protagonista
do que o de filho gay da uma velha empresária, talvez pela pouca participação
deste segundo e uma menor apropriação do personagem. Já Rossendo Rodrigues, que
encarna somente Lette (o protagonista dessa guerra moderna do ser e do parecer),
parece se apropriar de características corporais de alguns dos seus trabalhos
anteriores, como a fragilidade herdada por Michael Jackson e a canalhice do
indivíduo da primeira cena de Breves Entrevistas
com Homens Hediondos, para aqui desenhar a perceptível escala de evolução
exigida para o personagem título.
Por fim, é inerente parabenizar
todos, principalmente a diretora, pela concretização de “um mosaico polifônico
que reflete a jovialidade vibrante e inquieta da equipe criativa.” Sim, esse
objetivo parece atingido em cheio, em uma proposta cênica vigorosa que, mesmo “In Process”, é mais lapidada do que
muitas encenações já finalizadas. O Feio
é belo, possui atrativos múltiplos e, por todos os motivos descritos, se firma
como um dos melhores projetos do Departamento de Arte Dramática (DAD) que eu já
vi.
* Eriam Schoenardie é aluno do 3º semestre de Teatro do Departamento de Arte Dramática da UFRGS.
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