quinta-feira, 17 de maio de 2012

Crítica: O Feio - In Process, por Eriam Schoenardie


Iniciado na disciplina de Atelier I e prolongado em Estágio I, ambas sobre orientação de Patrícia Fagundes, O Feio – In Process é o espetáculo em cartaz no mês de maio no Projeto Teatro, Pesquisa e Extenção (TPE). A montagem, inclusive, já se mostra preparada para deixar o âmbito acadêmico para uma temporada no Goethe-Institut Porto Alegre no próximo mês, onde o público será agraciado com a versão final da peça. Contudo, é evidente que essa cereja do bolo só é possível graças a uma massa muito consistente, que usa de recursos policênicos como fermento e do panorama da perda de identidade do homem contemporâneo como recheio.
                O texto do dramaturgo alemão contemporâneo Marius von Mayenburg foi traduzido especialmente para esta montagem por Francisco Klinger Carvalho e pela própria diretora do espetáculo, Mirah Laline. O mérito inicial da encenação está na escolha de explorar a comicidade latente da obra, que acaba por servir como cerne principal para a origem consequente de todas as outras construções em palco, desde o ritmo da ação até os formatos escrachados de atuação. Em contrapartida, o que faz com que tudo isso não se torne apenas mais uma comédia rasgada é a essência ideológica do texto, que parece respeitosamente preservada e que acaba por conferir ao todo não só o riso satírico, mas também a seriedade do questionamento do ser.
                No chão do palco vemos uma espécie de campo de disputas desenhado, remetendo ao jogo de interessas no qual a história é calcada. Fora dessas linhas, os atores despem seus personagens, no melhor estilo Brecht. O figurino executivo usado por todos os atores vem ao encontro das negociações comerciais que circundam a trama e parece concretizar uma padronização que, na verdade, é a temática de toda a obra. A iluminação é precisa e satisfatória, e a única ressalva que faço é quanto à marcação de um ator fora do foco da luz com o intuito de fazer uma piada: a proposta como elemento avulso de metateatralidade não surte efeito, pois seria necessário que essa brincadeira com os mecanismos teatrais viesse acompanhada de outras situações similares, que não acontece.
                Não há tempo para distrações. A ação desenvolvida se dá em um ritmo acelerado e intenso, que a cada nova cena parece mais eficiente e que só não é alcançado na cena da conferência de empresas, em que os atores trabalham na quase imobilidade por tempo em demasia. O irônico é que essa dinamicidade é possibilitada justamente pelas transições de cena, muitas vezes o tendão de Aquiles de muitas montagens. Duas cadeiras e uma mesa com rodas em suas pernas, a iluminação bem marcada e o jogo teatral rápido dos atores associam-se para que não haja intervalos na narrativa. Há algo de cinema em O Feio, pois parece que a apresentação passou por uma hábil edição, que costurou pontualmente uma cena à outra. Falando de cinema, as poucas, mas interessantes, projeções de vídeo só pesam a seu favor – desde uma avulsa propaganda de hotel, responsável pela conquista da atenção do público logo nos minutos iniciais, até vídeos cirúrgicos reais que são causadores de um incômodo e de uma angustia que culminam na inserção do espectador frente à temática de discussão.
Outro artifício para a não dispersão das percepções do espectador é concretizado por coreografias ora vibrantes ora clichês, que desempenham um papel de injeção de adrenalina em cena. Exemplo vivo disso é a cena de abertura, uma longa sequência de movimentos que se apropria tanto de precisão como de caos corporal para conferir um princípio visceral a montagem desde seu primeiro momento, ato arriscado, mas que não decepciona. Tudo isso ao som do industrial metal dos alemães do Rammenstein, com certeza uma das escolhas musicais mais felizes. A trilha sonora pesquisada é um elemento bastante presente na composição de muitas cenas, porém em alguns casos trabalha com certa obviedade, que faz surgir a vontade de que ao invés de ser tão abrangente seguisse uma linha sonora mais específica, como, por exemplo, a do industrial metal ou talvez de músicas de origens germânicas (afinal, também temos Klaus Nomi).
                A cerca das atuações, é inevitável destacar que Paulo Roberto Farias nos presenteia com uma inspirada composição de seus dois personagens, na qual é nítido que o ator partiu do mesmo ponto em comum (dadas as características similares entre ambos), mas explorou as nuances que diferenciariam estas figuras e assim chegou a um chefe cínico e debochado e a um médico doentio e espasmódico.  Danuta Zaghetto segue pela mesma linha, mostrando-se versátil, pois enquanto uma de suas personagens é um arquétipo que vai ao poucos convencendo o espectador, a outra segue por um caminho mais realista, com uma sinceridade expressiva que conquista nossa simpatia de instantâneo. Marcelo Mertins constrói melhor o papel de principal oponente do protagonista do que o de filho gay da uma velha empresária, talvez pela pouca participação deste segundo e uma menor apropriação do personagem. Já Rossendo Rodrigues, que encarna somente Lette (o protagonista dessa guerra moderna do ser e do parecer), parece se apropriar de características corporais de alguns dos seus trabalhos anteriores, como a fragilidade herdada por Michael Jackson e a canalhice do indivíduo da primeira cena de Breves Entrevistas com Homens Hediondos, para aqui desenhar a perceptível escala de evolução exigida para o personagem título.
                Por fim, é inerente parabenizar todos, principalmente a diretora, pela concretização de “um mosaico polifônico que reflete a jovialidade vibrante e inquieta da equipe criativa.” Sim, esse objetivo parece atingido em cheio, em uma proposta cênica vigorosa que, mesmo “In Process”, é mais lapidada do que muitas encenações já finalizadas. O Feio é belo, possui atrativos múltiplos e, por todos os motivos descritos, se firma como um dos melhores projetos do Departamento de Arte Dramática (DAD) que eu já vi.

* Eriam Schoenardie é aluno do 3º semestre de Teatro do Departamento de Arte Dramática da UFRGS.

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